domingo, 2 de novembro de 2014

Lúcia Café: Da prostituta viciada em café e quiche de ricota com orégano.

Após deitar-me com três de mim, pelo preço vil de uma cantada barata e ilógicos fluidos sobre meu corpo, pego esta xícara vermelha de liquido preto e quente que, em franca substituição ao corpo preto de líquido branco, parece enfim aquecer os grandes lábios - vermelhos, mais ainda pelo batom da vez - que ostento em minha face. Eventualmente, tremo. Talvez seja o pó deste café, tão pouco moído que a droga em si se torna tão eficaz. Mas talvez seja a fraqueza das pernas que ficaram por tanto abertas. Visitas ao colo de meu útero, enquanto eu cavalgava em um colo sem nome, sem telefone, sem cartão de visitas, sem sabor, meu labor. Labor sem sabor que garante uma bolsa Prada falsificada, que garante um curso de inglês, cheap, numa ONG qualquer (pois busco a ascensão), que me garante o maquilagem vagabunda com a qual estouro minha pele.

Ou o que estoura minha pele não seja necessariamente a maquilagem, ou o pó, sempre compacto em tempos de minguadas carteiras, ou ainda compacto em tempos de "é bom ter alguma noção da realidade". Talvez seja aquele velho amor do filme de ontem, aquele clima tão estranho, embalado por aquela trilha sonora que provavelmente tocaria em meu prostíbulo - meu lar. A cada dentada em meu integral quiche de ricota com orégano, duas gargalhadas chorosas pela protagonista (não lembro o nome da atriz, quiçá sei) que sempre termina com o seu anti-príncipe encantado: um homem robusto, machista ao extremo, com piadas sarcásticas e um volume considerável em suas calças caras. Mas o bolo alimentar de minha saliva, massa, ricota e orégano, sem um café para ajudar a deglutir, parece ficar preso em minha garganta. O que tenho além de vários homens robustos, machistas ao extremo, com volumes sarcásticos e piadas consideráveis em seus velhos jeans rasgados?

Não sei se, por prudência ou desespero, saio da sala de cinema com minha microssaia de napa, uma bolsinha baguete antepenúltima moda, scarpin de oncinha com o salto um tanto gasto (mais gasto que eu, talvez), uma camisetinha livre, leve e solta, jogando o ar pesado de minha maquiagem puta-gótica para todos os lados, procurando, quem sabe, um grande amor, quem sabe, um cliente fixo, quem sabe, uma aventurinha. Chego a rogar, diante do espelho, pela graça da cruz de cristo em detrimento da desgraça da cruz de sífilis. Sou limpa, amém, mas a cada visita íntima, a cada acompanhamento bem-de-perto-tão-perto-que-é-dentro, penso quão mais limpo seria o véu da grinalda que, muito antagonicamente, eu ostentaria em uma igreja na qual eu pudesse pisar sem ser apedrejada. Na lanchonete no cinema, peço por um pacote de pipoca e uma xícara de café - tudo o que minhas economias podem pagar neste fim de mês. Tiro, com a ponta de meus dois dedos, mostrando o esmalte vermelho - vermelho-puta, porque trabalhamos com o exagero - o chiclé que eu estava mascando há dois dias. Derramo uma dose generosa de sal sobre a pipoca e outra nem tão generosa de açúcar no meu café. Derramo uma gota de lágrima e enxugo, não menos desesperadamente, o suor de minha testa que comprometeria o blush, o falso glamour, a esperança por boas notícias e a clientela da noite.

Acima do misto do cheiro do café, da manteiga, de meu desodorante quase vencido e de minha alma quase vendida, um amadeirado perfume toma conta da lanchonete, que pareceu perder todas aquelas cores berrantes diante do verde dos olhos do doutor que, em seu mocassim engraxado com dignidade (provavelmente de outros), pede, com voz grossa, um capuccino e uma água com gás (conta total: o dobro da minha, paga com uma nota de cinquenta, que voou displicentemente pelo balcão amarelo). Um frio e distante (mas, ainda assim, com um toque de menino que quer abocanhar algum doce) "Olá, boa noite" ecoou por todo aquele espaço geográfico e pelo espaço sideral que preenche minha cabeça oca. Já pensava eu em escrever o número de meu celular sem créditos em um guardanapo colorido qualquer, com meu batom, ou em indicar em quais orelhões daquelas redondezas eu apus o meu número. "Lúcia Café, negra, quente e pronta pra ser servida em sua xícara do amor". Do rápido diálogo dos meus olhos negros e sujos com aqueles cândidos e límpidos olhos verdes, formou-se um épico que poderia ser chamado pelos poetas de esmeralda empoeirada. Não teria eu forças para esticar minha microssaia para limpar a pedra preciosa; tampouco ele se incomodaria em sujar seu paletó - salvo se o jogasse no chão quando, por um trocado qualquer, me contratasse por aquela noite que sequer havia começado (para mim).

- A senhora (ou senhorita? ou vagabunda?) possui um jeito bastante peculiar de se vestir, ainda mais para um ambiente como este.

Logo pensei: "veado". Logo pensei: "padre trabalhando em minha conversão". Logo pensei: "não seria nada mau alguém para cuidar desta cabeleira". Logo pensei: "a conversão não seria nada mal, afinal a busco". Logo, não pensei em nada e apenas respondi:

- É o calor, não é mesmo?
- Sim, está bastante quente por aqui.
- O quão quente está? (com um olhar sacana, profano, convidativo e necessitado de dinheiro para outro café)
- Quente o suficiente para tirar este paletó e te pagar outro café.
- Aceito o café, mas não pense o senhor que ficará nisto.
- Ora, mas que ousadia, gosto de jovens assim, tão diretas.
- Não sou jovem, mas sou ousada.
- Beba seu café.
- Sou mais cara que um café.
- Creio nisto.
- Sei falar inglês e tenho roupas mais comportadas.
- Poderia ter usado uma roupa mais comportada hoje, não?
- Mas aí não estaria conversando com o senhor.
- Não me chame de senhor, trate-me como você.
- Te tratar como a mim? Não tenho dinheiro para tanto (embora "você" seja bem atraente). E também não trabalho com trocas de favores.
- Como trabalhar com troca de favores? Como trabalhar?
- Danço no escuro.
- Você está no escuro agora?
- Não, aqui está claro.
- Sim, bem claro.
- Bem claro que o senhor, ou você, enfim, esteja brincando com a minha cara e tenho que ir trabalhar.
- Como trabalhar?
- Danço no escuro.
- Mas aqui está claro... e claro que quero te conhecer. Diga, qual seu preço?
- Depende do serviço.
- Algo com a boca.
- Barato. Cobro pelo tamanho.
- Mas aí ficaria caro.
- Caro? É tanto assim?
- Sim, quero de sua boca as palavras de uma conversa grande o suficiente para te fazer...
- Fazer? Gozar?
- Talvez.
- Não gozaria com palavras.
- Mas gozaria de alguma felicidade.
- Não há felicidade na degradação.
- E qual o seu preço?
- Calcule o valor da reconstrução de minha personalidade. Subtraia algo do ambiente de vergonha no qual me insiro e multiplique pela glória da saída do submundo. Some o desgosto da exploração física. Tire o quociente e os dividendos de meus olhos que lacrimejam. Faça a raiz quadrada da igreja que eu não posso entrar, da sociedade que me marginaliza, do governo que não me dá assistência e dos pais que não me aceitam. Jogue o resultado nesta xícara e beba de uma vez só, deliciando-se com o sabor amargo de ser Lúcia Café.

Quem deve te pagar algo aqui sou eu.

E simplesmente saí. Deixei, pela primeira vez, o café quente pela metade e fui atrás de algum lugar em que meu celular finalmente tivesse sinal. Três mensagens da cafetina dizendo que existem clientes me esperando e não deveria ter saído por tanto tempo. Coitadinha, vagabunda, desavergonhada: lá vou eu, com meu corpo, comprar mais um quilo de pó. De café.